16 de janeiro de 2010

Criando Deuses - Parte I


Título: Criando Deuses - Parte I
Autor: José Kleibe Souza Silva (acadêmico de pedagogia - UFPA), Altamira - PA.
Contato: jkleiber_sander@hotmail.com


E NO INÍCIO, ERA O VERBO

Falarei aqui sobre um assunto interessante, um no qual você deve esbarrar enquanto desenvolve o seu próprio cenário de fantasia: a criação. Se algo tem um meio, é provável que tenha um princípio (e um dia talvez tenha um fim…), e por isso a maioria dos mestres se preocupa sim em explicar como se deu a origem de seu mundo, seja no momento em que ele está sendo criado, seja no futuro, quando os personagens forem jogados contra evidências que explicam (ou pior, complicam) a origem do universo conhecido.

Existem muitas e diferentes aproximações para o tema (falarei delas daqui a pouco), mas o primeiro passo a ser tomado é escolher a perspectiva criativa do seu cenário. Em outras palavras: Deus criou o Homem ou o Homem criou Deus? Bem, é possível ter uma campanha já em andamento e ainda não ter solucionado essa pergunta, bastando para isso que ela não tenha sido relevante enquanto seu jogo engatinhava. Talvez você tenha optado pela criação através do microcosmo, onde não existia nada fora do vilarejo dos personagens, até eles resolverem sair dele. Se essa foi a sua perspectiva, é bem provável que só agora esteja pensando em como o mundo foi criado.

Por outro lado, muitos mestres gostam de trabalhar de cima para baixo. Eles só começam a narrar uma história depois que já sabem certas minúcias sobre o cenário de campanha, e uma delas provavelmente será: como tudo teve início. Na maior parte do tempo, essa informação está oculta dos personagens, e também dos jogadores; trata-se de um pano de fundo, e o quão importante ele será depende apenas de você. É interessante gastar um certo tempo escrevendo algumas linhas sobre a real criação de seu cenário. Como veremos mais adiante, isso não precisa corresponder à visão geral.

Uma vez que tenha decidido a real história da criação do mundo, você pode determinar o quão importante ela será no jogo em si. Quem a conhece? O quanto conhece? Será que seus elementos são reconhecidos por uma ou mais religiões? Você pode primeiro responder essas perguntas, ou pensar inicialmente se deseja ou não que a criação seja um aspecto fundamental. De qualquer forma, diante de suas próprias respostas, você já saberá que efeito ela exercerá sobre o cenário.


A PERSPECTIVA RELIGIOSA

Neste quadro, temos várias ordens ou seitas religiosas apresentando diferentes formas de dizer como o mundo foi criado. Se alguma delas está certa ou não, cabe a você dizer, mas para o cenário de campanha, nenhuma delas está errada até que se prove o contrário. Religiões estruturadas em Panteões costumam associar as diversas facetas da criação a diferentes deuses. Cultos monoteístas possuem uma visão um pouco mais simples, no sentido de que um único deus é geralmente responsável pela criação do todo, e não é necessário explicar as diferentes delegações de funções.

Formas diversas de encarar a criação do mundo são um bom exemplo de como começam os conflitos religiosos. É um dos pontos onde tipicamente existe a maior divergência entre facções, e onde a intolerância aflora com mais intensidade. Se você tem interesse em explorar o fundamentalismo e os conflitos religiosos em seu cenário, este é um ponto excelente para começar.


A PERSPECTIVA CIENTÍFICA

Trata-se de uma perspectiva que prevalece pouco em cenários de fantasia. Este é o exemplo máximo da visão de que “o Homem criou Deus”. Embora não seja comum na maioria dos cenários, talvez você queira fazer diferente, e elabore facções de pesquisadores de ciências naturais (muito como os filósofos da Grécia antiga) que passam seu tempo divagando sobre a natureza das coisas, e podem até mesmo chegar a pensar em um mundo que evoluiu a partir de um ponto zero, sem a necessidade de uma figura divina para conduzir as coisas.

Esta ótica é típica de sociedades avançadas, e não se entrelaça bem com o cenário de fantasia típico, mas cabe a você decidir o quão avançados são os povos de seu cenário. É importante frisar que, uma vez que tenha tido acesso a pensamentos tão vanguardistas quanto teorias não religiosas sobre a criação, uma sociedade tende a abandonar o misticismo e se aventurar em caminhos de lógica e método científicos. Até onde eu sei, esta não é a aproximação que a maioria dos mestres deseja para seus cenários de fantasia.


A PERSPECTIVA RACIAL

Neste cenário, temos diferentes mitos de criação, cada um deles associado a uma raça de fantasia, que provavelmente vai colocar a si mesma (ou a algum ancestral mítico) no topo do processo de criação. Esta aproximação é mesclada com a perspectiva religiosa em muitos cenários, e muitas raças possuem um mito de criação que mistura religiosidade e exaltação de seu próprio povo.

Diferente da perspectiva religiosa, no entanto, aqui não vemos a contradição entre as visões de cada raça se degenerar em conflito aberto. Trata-se mais de uma questão de uns dizerem aos outros: “vocês estão errados”. Obviamente, o que um pensa faz pouquíssima diferença para o outro; seria estranho se um anão se importasse com o fato de que um elfo[1] não acredita em sua versão para a criação; ele é um elfo, não deveria se esperar coisa boa deles mesmo…

[1] Elfo são criaturas semelhantes com os seres humanos com algumas modificações como: orelhas pontudas, enxergam duas vezes mais longe que os humanos e não possuem nenhum pêlo pelo corpo são famosos pela sua longevidade.

Um ponto interessante da perspectiva racial é que ela pode gerar conflitos interessantes, mas com os quais apenas grupos maduros estão preparados para lidar. Estou falando de coisas como preconceito racial e, nos casos mais extremos, tentativas de limpeza genética. Uma perspectiva racial pode não estar separando duas raças, mas sim duas etnias, momento em que as tensões podem se tornar insustentáveis, pois é comum que vários braços de uma mesma raça sejam obrigados a conviver. Se você não se sente preparado para lidar com esse tipo de conflito, é melhor deixá-lo de lado um pouco.


A LÓGICA MACROCÓSMICA

Talvez você ignore a maior parte do que foi dito acima, e decida que vai fazer as coisas de uma forma simples, porém utilizada na maioria absoluta dos cenários de fantasia. Esta visão está para “Deus criou o Homem” assim como a perspectiva científica está para “o Homem criou Deus”, e adota uma lógica muito simples: existe uma verdade universal, e ela é conhecida (pelo menos em parte) pela maioria das pessoas.

Neste cenário, o plano científico nunca se desenvolve, pois os deuses são parte freqüente da estrutura do cenário, e todo mundo sabe que eles realmente existem. O mito da criação talvez seja 50% mito, mas é pelo menos 50% verdadeiro. Aqui, é natural que você escreva o relato da criação do mundo e só depois pense como ele será baseado nisso. Tenho percebido que essa ótica é muito mais complexa do que deixa transparecer inicialmente, e a maioria dos cenários não lida com ela de uma forma muito correta.

Pense em nós seres humanos: como seríamos? Qual seriam nossas motivações se os maiores segredos de nossa existência não fossem segredos? Ainda sim o homem teria seu impulso pesquisador? A ciência avançaria se soubesse a explicação para a origem do mundo e das espécies que neles habitam? De certa forma, as incógnitas que cercam a nossa realidade nos impulsionam para grandes feitos. Estranho, mas cenários de fantasia tendem a ignorar isso, e pintar seus humanos exatamente nos mesmos tons daqueles que, desde a aurora do conhecimento, se perguntam, em vão, qual é a origem das coisas.


O QUE SÃO DEUSES?

O ponto inicial para a escolha da existência de Deuses ou não em um cenário é compreender a natureza desses seres poderosos. Essa é uma das mais difíceis questões filosóficas existentes, pois as definições para Deuses são diversas, variando de entidades cósmicas criadoras do céu e da terra a feiticeiros-reis de grande poder, sendo extremamente difícil definir com exatidão o que torna alguém ou alguma coisa uma entidade divina. Determinarei de maneira simplista, os Deuses como sendo seres capazes de reger aspectos do mundo mortal. Evidentemente é uma definição que abre brechas para vários exemplos contrários, mas irá servir para nossa análise.


PROGENITORES

Neste tipo de cenário, os Deuses foram responsáveis pela criação de todo o universo (ou uma parcela importante dele), mas desapareceram após a finalização de sua obra. Por terem desaparecido logo no início da história, as sociedades se desenvolveram sem características religiosas particulares, embora possam eventualmente desenvolver sistemas filosóficos que sirvam, até certo ponto, como sistema religioso. Uma outra possibilidade é o florescimento de diversos sistemas religiosos, Panteões e crenças nesse mundo, mas com nenhuma delas apresentando provas táteis da existência de seus deuses, com as religiões servindo como alicerce político, filosófico e social, em uma abordagem semelhante a nossa realidade.

Assim, o poder mágico decorrente dos Deuses não existe, ou existe de maneira alternativa. A crença em alguns conceitos como Justiça, Paz ou Guerra poderia conceder poderes de maneira semelhante aos poderes dos servos dos Deuses; talvez as entidades progenitoras tenham deixado alguns locais imbuídos com poder divino, que poderiam ser utilizados para fins variados, indo da criação de itens mágicos carregados com energia dos Deuses a regiões inteiras permanentemente modificadas pela presença divina. A inexistência da magia divina, porém pode gerar conseqüências interessantes. Sem magias de ressurreição e cura, normalmente associadas à magia dos Deuses, a vida se tornará muito mais dura, ou as ciências médicas irão se desenvolver muito mais do que o padrão dos cenários de fantasia. Uma outra possibilidade é um maior desenvolvimento da magia arcana, que poderá, nesse tipo de cenário, ser capaz de executar alguns efeitos associados normalmente à magia divina.


DEUSES CATIVOS

Em um cenário onde os Deuses sejam cativos, eles já estiveram presentes na vida dos mortais, mas alguém ou alguma coisa muito poderosa os prendeu, impedindo que sua influência seja exercida. O motivo dessa prisão, como ela ocorreu e o que foi responsável por ela são questões fundamentais aqui. Talvez os Deuses tenham sido aprisionados por sua própria magia, ao quebrarem um antigo acordo firmado em eras ancestrais, talvez o último Deus sobrevivente de uma batalha entre essas poderosas entidades esteja paralisado, com a espada de seu último adversário penetrando seu coração, ou forças mais poderosas que os próprios Deuses poderiam ser as responsáveis pelo cativeiro. Como a prisão dos Deuses irá afetar o cenário? Irá depender da forma que eles atuavam no mundo mortal. Se caminhavam entre os homens, participavam de guerras e desenvolviam romances com os mortais, sua falta será rapidamente sentida. Caso atuassem de maneira mais discreta, poderia levar muito tempo para a falta dos mesmos ser percebida, de fato, caso ainda possam conceder poderes para seus servos do cativeiro em que se encontram, a própria prisão dos Deuses pode nunca ser notada, e nesse caso, não teremos um cenário sem Deuses. O desaparecimento dos poderes mágicos dos Deuses no mundo pode ocorrer de maneira gradual, ou de maneira abrupta, ambas as alternativas apresentam possibilidades interessantes para o cenário de campanha.

Uma possibilidade nesse tipo de cenário é a dos jogadores se envolverem na libertação dos Deuses, essa idéia é particularmente interessante para um mestre que procure uma campanha com tons notoriamente épicos, caso os jogadores sejam os protagonistas diretos dessa missão em especial.


DEUSES SILENCIOSOS

Os Deuses existem, mas não atuam no mundo mortal, estando absortos por demais em suas próprias questões e problemas. Se os Deuses nesse cenário eram antes particularmente ativos e então se silenciaram, é possível estabelecer um quadro de Deuses Silenciosos sem a análise da magia divina, caso contrário, só será possível constituir esse caso em particular se a magia divina não existir, ou for particularmente rara. O que irá diferenciar um cenário onde os Deuses não se manifestam de um cenário onde eles foram apenas os progenitores é que essa letargia divina não é plena, em algumas raras situações, os Deuses irão demonstrar que estão presentes, e observando. Seja através de conjuntos arquitetônicos enormes e abandonados, erigidos pelos Deuses em eras ancestrais a ilhas afundando e ardendo em fogo quando as transgressões ocorridas ali foram hediondas até mesmo para retirarem os Deuses de sua posição de observadores.

Um cenário onde os Deuses sempre foram silenciosos pode se assemelhar com um cenário onde os Deuses foram apenas os Progenitores, com a diferença que algumas raras manifestações divinas serão, muito provavelmente, suficientes para a formação de igrejas e cultos em homenagem a essas divindades particularmente distantes mas com a falta da magia divina sendo sempre uma questão relevante, embora em um cenário sem magia divina, a possibilidade da intervenção dos Deuses, mesmo que rara, surja como algo extremamente almejado, caso essa intervenção seja a favor dos fiéis de determinada religião. De fato, a própria existência desses cultos pode ofender os Deuses de alguma maneira, fazendo com que templos ardam em luz celestial de tempos em tempos. Em um cenário onde antes os Deuses eram ativos e de repente se calaram, requer a formulação de uma explicação para tal situação, que fuja a idéia deles estarem aprisionados, o que constitui outro caso. Essa explicação poderá ter grande relevância na vida dos personagens.


PODERES CONCEITUAIS

A idéia dos Poderes Conceituais expande a sugestão dos Deuses Progenitores. Nesse cenário, os Deuses não existem, mas existem forças atreladas a idéias ou elementos naturais capazes de conceder poderes divinos. Assim, é possível obter poderes mágicos da crença na Justiça, na Lei, no Fogo, nos Mares… Esses conceitos podem agir de maneira divina, sendo “quase-poderes”, apenas não demonstrando a consciência característica dos Deuses; ou podem ser apenas um foco em particular, com o poder mágico em si vindo da própria crença e força de vontade dos fiéis. Independente disso, não existem Deuses tradicionais nesse cenário, as religiões serão focadas em conceitos mais simples, sendo menos alegóricas e mais diretas, o que não quer dizer que o antagonismo ou complexidade política das igrejas estará ausente.


DEUSES MORTOS

Nesse cenário os Deuses uma vez existiram e foram presentes no mundo mortal, mas de alguma maneira, foram mortos. O motivo da morte dos Deuses é muito importante. Talvez tenham morrido em uma batalha entre si, talvez tenham sido mortos por Deuses externos, de outros Panteões ou cosmologias, talvez tenham sido mortos por entidades ainda mais poderosas. A morte dos Deuses gerou definitivamente mudanças profundas no mundo mortal. Eventualmente, a magia divina parou de existir, embora esse processo possa ter sido variado (a morte de um Deus talvez não faça com que seu poder divino pare de ser provido da noite para o dia, de fato, uma possibilidade interessante é os primeiros efeitos da morte dos Deuses estarem sendo sentidos no cenário apenas agora, muito tempo depois do momento real de suas mortes). Caso os mortais não saibam que os Deuses morreram, podemos ter situações sociais semelhantes a apresentada em quadros acima, porém caso os mortais tenham consciência da morte dos Deuses, talvez até presenciando esse momento particularmente dramático, o terror pode ter se espalhado entre os todas as raças, ou os mortais podem ter se envolvido diretamente na morte dos Deuses, caso ela tenha ocorrido em batalhas, de fato, a mais sangrenta das batalhas de um cenário em particular pode ter tido os Deuses guiando pessoalmente exércitos de centenas de reinos mortais, e tendo como final a morte dos próprios generais divinos. Na verdade, a própria natureza pode ter respondido a morte daqueles responsáveis pelo controle de algumas forças do mundo: A morte do Deus do Fogo pode ter feito todas as chamas do mundo se apagarem por uma noite; A derrota em combate do Deus das Trevas pode ter mergulhado em sombras todo um continente por um mês, devido a liberação de sua poderosa energia.

Continua...

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Atenção RPGistas! Enfim, após um tempo estacionado em uma preguiça mental, encontramos um nome mais adequado à este quadro com a participação de RPGistas com suas idéias e criações eventuais. Portanto! O que antes era chamado de "RPG Pará e você. Tudo haver!", cópia de uma das famosas frases do canal de TV Globo, agora será chamado de Colaborador Eventual do RPG Pará.

Nós do RPG Pará gostariamos de agradecer ao Kleibe por ter participado do quadro Colaborador Eventual do RPG Pará. Aqueles que também estiverem interessados em participar desse espaço e publicar suas idéias e outras coisas mais sobre RPG, deverão seguir as orientações no seguinte link: Colaborador Eventual do RPG Pará.

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